A Economia Portuguesa na Encruzilhada: Que futuro para as finanças públicas?

O meu caro amigo José Marques da Silva, economista, escreveu o artigo que partilho consigo no final de 2002 no caderno de Economia do semanário Expresso. Este artigo mantém-se inabalavelmente actual. Por quantos anos mais se manterá assim? Sugiro que leia este artigo ignorando a data da sua publicação.

 

A economia portuguesa na encruzilhada:

Que futuro para as finanças públicas?

por José Marques da Silva

 

Depois da euforia generalizada com a entrada no núcleo fundador da moeda única, o Euro e de uma década de aproximação à média europeia, Portugal atravessa hoje um dos piores momentos da sua história económica recente.

É urgente tomar medidas de política económica que voltem a repor a economia e o país numa trajectória de desenvolvimento e convergência com a União Europeia, que nos permitam ultrapassar, o mais rapidamente possível, a actual crise, sob pena de passarmos os próximos anos a desperdiçar recursos e a divergir da Europa.

O progresso dos últimos anos, resultante da bem sucedida integração na União Europeia parece ter estagnado e não se vislumbra forma de ultrapassar essa letargia.

Pior ainda, dando crédito às previsões da Primavera da Comissão Europeia, tornadas públicas no passado mês de Abril, o país prepara-se mesmo para divergir da média europeia, já no corrente ano, o que aconteceria pela primeira vez, em fase de expansão, desde a adesão à então Comunidade Económica Europeia (CEE), a 1 de Janeiro de 1986.

 

Numa altura absolutamente crucial para o desenvolvimento da Europa e dos europeus, em que se prepara o alargamento a dez novos Estados-Membros, da Europa Central e de Leste – que aumentará a população da EU em 45% e o produto em cerca de 17% – e se discute o futuro da União, no seio da Convenção para o futuro da Europa, altura em que estrategicamente o país teria de estar bem preparado para enfrentar os desafios que se aproximam, é que a economia portuguesa revela as suas verdadeiras vulnerabilidades.

 

Portugal assistiu entre 1986 e 1990, com a adesão à então CEE, a um período de significativo crescimento e prosperidade, talvez um dos melhores períodos da economia portuguesa.

 

Concretizaram-se importantes reformas e modernizou-se a economia, particularmente em sectores como a banca, os seguros ou o mercado de capitais, os ganhos de competitividade foram significativos e a cadeia de valor saiu reforçada.

 

Entre 1990 e 1995, introduziram-se níveis pouco habituais de disciplina e rigor com o objectivo de preparar o país para a adesão à moeda única. Portugal ganhou credibilidade acrescida, ao ter conseguido cumprir os critérios de convergência nominal, que lhe garantiram um lugar no núcleo de fundadores da moeda única, mesmo contrariando as expectativas dos países do centro da Europa.

 

Entre 1995 e 1999 a economia foi avançando, beneficiando da credibilidade do Euro e do processo de convergência, designadamente da redução das taxas de juro e da estabilidade macroeconómica, determinante para um crescimento sustentável.

 

Com a entrada em vigor do Euro a economia perdeu a sua “capa” e as vulnerabilidades, sempre presentes, começaram a fazer-se sentir de forma dramática, empurrando o país para uma situação bastante difícil.

 

Para relançar a indispensável modernização da economia e do país, é necessário ultrapassar os seus tradicionais factores de estrangulamento: desordem nas finanças públicas, falta de produtividade e de competitividade, ausência de projectos estruturantes e de factores de inovação, ineficiências do sector público, falta de mão-de-obra qualificada, de investimento eficiente e reprodutivo, entre muitos outros.

 

Na análise que se segue debrucemo-nos sobre o caso particular da deterioração das finanças públicas e sobre as suas principais implicações para o processo de consolidação e crescimento económico do país.

 

A Situação das finanças públicas

O desequilíbrio das contas públicas é um dos maiores problemas estruturais da economia portuguesa. Sem finanças públicas sãs e equilibradas não há crescimento económico sustentável nem potencial de crescimento a longo prazo.

 

Portugal não pode viver permanentemente acima das suas possibi
lidades, é necessário e urgente pôr fim ao verdadeiro “descalabro” em que se encontram as finanças públicas, ao ciclo vicioso de mais impostos para financiar mais défice, alimentando o “monstro” enquanto se subtraem recursos ao sector privado.

 

Apesar da unanimidade entre economistas e responsáveis políticos, quanto ao diagnóstico e à terapia a seguir, até então pouco se terá feito para inverter a situação. A manter-se a trajectória orçamental do primeiro trimestre deste ano, sem as medidas de austeridade e o Orçamento Rectificativo entretanto apresentado pelo novo Governo, Portugal chegaria ao final de 2002 com um défice público superior a 4% do produto.

 

Seria, de resto, o défice mais elevado da UE, bastante acima dos 3% previstos no Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), correndo-se o risco de perder os fundos estruturais ou sofrer pesadas multas impostas por Bruxelas.

 

O relativo sucesso do processo de convergência e de ajustamento estrutural da economia portuguesa rumo ao Euro, caracterizado pela estabilidade macroeconómica, crescimento do produto acima da média da UE, num ambiente de descida acentuada da taxa de juro, foi ocultando a forte tendência despesista que se instalara na economia em geral e no sector público em particular, não se aproveitando esse enquadramento favorável para fazer as reformas estruturais de que o país tanto precisa.

 

Entre 1995 e 2001 o montante de juros da dívida pública portuguesa desceu quase quatro pontos percentuais, de 6,2%, para cerca de 3% do PIB – cada ponto percentual na descida da taxa de juro representava para o OE uma poupança suplementar de cerca de 500 milhões de Euros, sensivelmente o mesmo valor que o Governo espera arrecadar, em receitas suplementares, com o aumento da taxa média do IVA em 2%, de 19% para 21%.

 

Ao mesmo tempo, a percentagem de receitas do sector público, no conjunto da economia, fruto do crescimento económico, cresceu outros quatro pontos percentuais, passando de 40% para 44%.

 

Pelo efeito conjugado destes dois fenómenos, entre 1995 e 2001, o anterior Governo viu as suas disponibilidades financeiras adicionais aumentarem cerca de oito pontos percentuais, sem que melhorias na qualidade dos serviços se tivessem notado, ou ganhos de eficiência fossem visíveis aos contribuintes.

 

Para se compreender a verdadeira dimensão do desperdício, refira-se que esse valor representa quase o dobro do impacto que os fundos estruturais, transferidos pela UE, têm na economia portuguesa (cerca de 4%).

 

Tal como nos dizem os manuais de Finanças Públicas, esta fase positiva do ciclo deveria ter sido aproveitada para:

§ Promover uma consolidação orçamental saudável;

§ Melhorar a qualidade dos serviços públicos;

§ Reduzir a carga fiscal sobre as empresas e as famílias;

§ Promover a competitividade fiscal do país face aos seus concorrentes;

§ Lançar reformas de fundo que nos tornassem um país viável e com futuro para as suas gerações.

 

Lamentavelmente nada disso foi feito, seguiu-se o caminho mais fácil e optou-se por aumentar ainda mais a despesa corrente primária (gastos públicos sem os juros da dívida) que passou de 33,4% para 37,5% do produto, numa política orçamental expansionista e pró-cíclica, que colocou Portugal como o único país da UE a aumentar a despesa pública corrente, nesse mesmo período.

Essa situação é tanto mais grave se atendermos ao facto de cerca de 60% dessa subida se destinar a alimentar a massa salarial da função pública e as transferências para as autarquias e regiões autónomas, quando o ciclo inverter e a factura vier alguém terá de pagar a conta.

Recorde-se que as Leis das Finanças Regionais, Locais e da Segurança Social, aprovadas em 1998/9, determinam transferências automáticas do OE, sem correspondência directa com os objectivos nacionais de consolidação orçamental, sendo aqui que se encontra o verdadeiro problema da rigidez das finanças públicas, deixando-se muito pouca margem de manobra para reduzir o défice público.

 

O “monstro de apetites vorazes” de que nos havia falado o Prof. Cavaco Silva há dois anos atrás, parece afinal estar bem vivo!

 

Aqui fica o registo de mais uma oportunidade completamente perdida para a economia portuguesa.

 

A situação de descontrolo, nas finanças públicas, foi tão grande que se instalou uma guerra de números entre o actual, o anterior Governo e a CE sobre a situação exacta do défice. O que levou o actual Governo a nomear uma “Comissão tripartida”, formada pelo Ministério das Finanças, o Banco de Portugal (BdP) e o Instituto Nacional de Estatística (INE) para avaliar, com rigor, a situação das finanças públicas portuguesas e o verdadeiro valor do défice público de 2001, a apresentar por Portugal em Setembro do corrente ano no âmbito do reporte dos défices excessivos à CE.

 

O processo de contabilização das transferências para as Autarquias Locais motivou uma correcção que se traduziu num acréscimo de 0,2% no défice. A “reclassificação estatística” das transacções de capital entre o Estado e as empresas públicas – que motivou um esclarecimento público por parte da anterior equipa das Finanças – agravou em 0,3 pontos percentuais o défice de 2001.

 

Feitas as contas com base nos 2,2% do PIB comunicados à CE, para efeitos do acompanhamento da situação portuguesa no âmbito do PEC, os dois acréscimos/correcções referidos – de 0,2 e 0,3 pontos percentuais – colocariam o défice português de 2001 nos 2,7%, contudo os valores definitivos só serão conhecidos no próximo mês de Setembro.

Para tentar corrigir a trajectória de divergência das finanças pública e respeitar o tecto de 3% para o défice público previsto no PEC, o actual Governo propôs um conjunto de medidas que alteram a Lei do OE para o ano 2002 e que é suposto colocarem o défice nos 2,9% do PIB a 31 de Dezembro de 2002.

 

Medidas económicas propostas pelo novo Governo: o inevitável aumento dos impostos

O país conheceu assim pela mão do novo Governo, num ambiente de dramatismo mediático e político, o seu primeiro Orçamento Rectificativo do ano de 2002, que não retoma as medidas preconizadas em ambiente de campanha eleitoral, como o designado “choque fiscal” e a prometida redução de impostos, mas que contém um conjunto de medidas de curto prazo, que visam a redução da despesa pública e mais importante ainda, dão um importante sinal ao mercado do sentido de mudança da política económica, numa estratégia clara de gestão de expectativas dos agentes económicos, as mais importantes:

 

1. O aumento da taxa do IVA em 2%, dos actuais 17% para os 19%;

2. A extinção de cerca de 30 organismos públicos e a fusão de outros 40;

3. A suspensão de admissões na função pública, com a criação de um quadro de supranumerários;

4. O fim na bonificação dos juros para o crédito à habitação (para as escrituras a realizar após 30 de Setembro de 2002);

5. Limitação do endividamento líquido das autarquias.

 

A generalidade dos fiscalistas concorda com as medidas apresentadas, atendendo à rigidez que caracteriza a despesa pública portuguesa e à necessidade de obter um aumento da receita a curto prazo.

Interessará sobretudo discorrer sobre a subida da taxa do IVA que só se torna efectiva, neste ano fiscal, em quatro meses para o regime mensal e uma vez para o regime trimestral.

Em termos de aumento das receitas, estima-se que uma subida de dois pontos percentuais na taxa do IVA possa gerar entre 400 e 600 milhões de Euros de receita suplementar e permita reduzir o défice em cerca de 0,4%. No entanto, é de esperar também, pelo menos temporariamente, uma retracção do consumo privado e consequentemente uma possível redução no crescimento da economia e por consequência um efeito negativo induzido pela quebra do consumo.

 

Por outro lado, ao incidir sobre 75% dos produtos que compõem o cabaz de produtos utilizados para calcular a evolução da inflação, provocará inevitavelmente um aumento na inflação – diferentes estudos estimam este efeito entre 0,2% e 0,6%, mas o Banco de Investimento Morgan Stanley, acredita que esse valor possa chegar a 1% – embora esse impacto se faça sentir de uma só vez, não se traduzindo em futuras pressões inflacionistas e o verdadeiro impacto dependa, em qualquer dos casos, do grau de contenção salarial que se vier a observar.

 

Alguns analistas acreditam também que a subida da taxa provocará uma degradação nas condições de competitividade dos produtos portugueses, designadamente no mercado ibérico, com particular gravidade no designado cros
s-border shopping
.

 

Se a diferença actual de um ponto percentual na taxa máxima do IVA – a taxa em Espanha é de 16% – gera uma diferença favorável de 2,5% em termos de taxa média para a Espanha, uma subida de 2% da taxa máxima em Portugal não deixará de ter consequências mais graves sobre a competitividade da economia, particularmente grave poderá ser a situação do sector do turismo em que esse diferencial é ainda maior.

 

Mas como dizia, em síntese, o ex-ministro das Finanças Hernâni Lopes: “O IVA é o imposto menos estúpido de todos, é fácil de gerir e é sempre cobrado”. Certamente argumentos não despiciendos a que as Finanças não se mostraram indiferentes.

 

O aumento dos impostos que o Orçamento Rectificativo uma vez mais nos trouxe aparece, de novo, como a solução milagrosa para conter o défice, no entanto não se podem negligenciar as consequências desastrosas que essa solução implica para a economia portuguesa.

 

É absolutamente necessário tomar medidas que promovam o acréscimo de eficiência da economia no seu conjunto e que contribuam para resolver os problemas estruturais de falta de produtividade, de competitividade e de ausência de expectativa positiva para o futuro, tão importante ao crescimento potencial da economia.


Licenciado e Mestre em Gestão de Empresas. Presidente da Gesbanha, S.A., especialista em capital de risco e empreendedorismo, investidor particular ("business angels") e Presidente da FNABA (Federação Nacional de Associações de Business Angels). Director da EBAN e da WBAA

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